paulo castro Uma das pernas tinha que esperar a outra encostar no chão, para arremeter ao alto, sem risco de queda. Pelo vestido florido, as cartilagens inchadas. Ela caminhava como se a dor fosse do chão e não de si. O primeiro sinal. O primeiro estigma.
Dedos curvos numa incredulidade minha, como possível assim, pegar e eu pegava com a facilidade a xícara e o cigarro. Pegava minha dor e fazia festinha de amigos com ela, as meninas trazem a buceta e os meninos trazem os risos para corroborarem minha piada exata.
E ela ali não vendia nada. Bem que eu precisava de um corte de cabelo, um fazer de barba, e ela ali como se não pudesse ser mais corpo a gravidade da corcunda.
Me olhou pelo olho que sobrava sem encortinamento da pálpebra funda, incomodavelmente teatral ainda em mim, "como vai vc, Fulaninha, que tal nesse fds a gente não se...". Lan house fede Douritos e peido. Lan house é o substituto da piscina do clube: quentinha de tarde não pelo sol, mas da molecada que mijava e ainda mija, mas hoje o faz nas bocas escancaradas das dependências e enlaces sacaneadamente chamados de sociais. Tudo bem que ontem eu mesmo fazia as contas com os carpaccios antropomórficos que levo na carteira. São as dependências que mantêm as coisas em ordem entre os vivos. "Fulaninha, vc me dá a honra e eu te dou banho na Jacuzzi com teto móvel, ai que sol mais go-to-so !".
E teve ( tempo, espaço, o que agora quentes querem ?) que a velha estancou na porta. Sistema Hieronimus Bosch de náusea no moleque chicletento na entrada:
- O que a senhora deseja ?
Mal se ouvia a voz (sem lamento, segundo estigma), mas aquele olho restante, cinza cachoeira, olhava para mim e a sensação era que não tinha mais eu lá, eu onde, eu quando, porra de Kant querelante, não funciona nos trópicos mesmo com a sinergia bestificante do ar-condicionado avec goteiras.
Ê já chicletento sabor framboesa língua preta splish cool rave night empurrando aquele corpo para fora, corpo sem conexão, sem multi-mídia, sem anti-vírus, sem RPG.
- Ô seu merda. Deixa a velha vir falar comigo.
- O dono disse...
- Porra, seu merda - levantando.
A velha sorriu as gengivas e uma derramagem de invasão: o cheiro de terra, algo como se Pernambuco se transformasse em um câncer geográfico, fazendo desaparecer os aromas de bacon, gatorade e restos de almoço lazanha mãe corrida sadia, claro, bolonhesa. Entendo o desespero nostálgico do ar-condicionado. Tipo: a mão do operário.
Solta. Solta, mancando, sorrindo, parece que cai, parece que é mais forte, cálculos vindos dos ciclos sol-lua, ela chegou ao meu lado, impedindo que me sentasse novamente: aqueles ossos protusos e rebeldes tinham força na mão de minha mão.
- Velha, o carpaccio...
- Jesus ! Salvador dos Homens.
- Caralho.
- Lindas palavras !
- Quem sabe um pão de queijo....
- Tua alegria que multiplica !
Tentei arrancar minha mão daquela coisa que fazia arrepio de uma forma pianesca. Mas eu não queria. Ou uma coisa sem nome fazia a cola.
- Jesus....obrigada por já me ter feito morta. Tudo ficou para trás, estrada, filho e cachaça. Tudo dos vivos agora não mais me chora, estrada, filho tiro. Vejo e visito o mundo dos vivos, vivo morta entre eles, um preso, outro crack, tem aquela com a barriga. Mas nada mais me faz sofrer. O senhor, Jesus, me fez morrer. Nada mais dói. Meu peito agradece em oração. Os vivos podem me ver e eu vejo os vivos, mas por sua graça....
- Senhora....
- E de Nossa Senhora....eles não conseguem....atravessar aqui, atravessar para mim, atravessar aqui onde está o paraíso do que me cerca e do que é minha carne.
A molecada com os fones de ouvido, nem aí. O Chicletento no telefone, falando, me olhando com ódio.
- Eu realmente não sei o que posso fazer por você, dona, eu...
- Atravesse.
- O que ?
- Meu bom Jesus, atravesse e me abrace. Sou sua esposa e não do outro que no inferno queima.
Não houve pensamento.
Não houve compaixão, dó, poesia, pena, comunismo, não houve.
Só houve que a abracei com força.
A tirei do chão. Levantei aquele corpo e segurei em meus braços. Costa em um, perninhas atrofiadas em outro. A testa dela ao alcance de minha boca.
Beijei.
E mais um pouco abaixo. Beijei sua boca. Salivas misturadas e a tontura de vinho.
Ao devolvê-la ao chão, ela chorava e sorria. Ela estava dentro de mim. E eu dentro dela. Não havia o que separar.
- Meu bom Jesus...sigo meu passeio pelo paraíso que para mim criou....e o Senhor sabe bem, criou para si. Saiba bem. Criou para si.
- Eu sei. Eu sei mesmo.
E cambaleante como entrou, ela saiu, atravessando o vidro fumê, ganhando o verão da rua, ou a carícia de um êxtase temperado.
Cinco minutos de nada em mim, de nada em lugar algum.
Metafísico ?
Nem de longe.
Paguei os minutos e fui cortar o cabelo e a barba. De tarde, tomar um porre. De noite, ligar para o disque-puta. Ou Fulaninha, se tivesse com saco de ouvir sobre seu mestrado.
Afinal, já não mais importava.
Nunca importou.
A lã da matéria feita nas membranas dos fatos. Furada. Estigma.
º